Publicado no jornal Correio 24/2/2015

Entre os 12 mortos e os 6 baleados pela Polícia Militar na já tragicamente histórica incursão da Rondesp na Vila Moisés, no Cabula, um dos dados que mais convidam a uma reflexão e investigação mais profunda por parte da sociedade e dos próprios órgãos públicos é o fato de, dentre eles, apenas dois terem antecedentes criminais. A tão famosa passagem pela polícia. Um por tráfico e porte de drogas, outro por briga no Carnaval.

E por que esse deve ser um aspecto destacado no caso? Porque tanto a polícia quanto a sociedade, de forma quase consensual, embora não explicitada verbal e publicamente, usam a passagem de uma pessoa pela polícia para justificar a tortura ou os tiros para matá-la, em vez de prendê-la, quando não se pode considerar normal que policiais usem a mesma logística dos criminosos: atirar para matar. A legislação brasileira não prevê execução sumária nem pena de morte e a polícia só está autorizada a atirar para matar quando se trata de auto de resistência, ou seja, quando criminosos já a enfrentam à bala. No entanto, multiplica-se o fenômeno de classificar como auto de resistência mortes de criminosos rendidos, desarmados, muitos crivados de tiros disparados pelas costas.

Se, então, entre 18, apenas dois dos homens da Vila Moisés tinham passagem pela polícia, cai por terra a teoria social do consolo segundo a qual, se morreram, foi porque mereciam, porque eram bandidos com extensas fichas policiais ao longo de suas curtíssimas vidas, já que muitos estavam na faixa dos 20 anos, alguns abaixo, mesmo sendo exímios assaltantes de banco, nas versões divulgadas. Se é, se foi assim, estamos vendo nascer um fenômeno novo e estarrecedor. Ou seja, se foi isso mesmo, o poço da insegurança pública e da violência urbana é muito mais fundo do que a população é capaz de imaginar.
Tudo deles

Se a sociedade está vendo surgir bandidos desse quilate, perigosíssimos, assaltantes de banco armados até os dentes e dispostos a enfrentar a polícia a saraivada de balas, e que, paradoxalmente, não têm nenhum currículo criminoso nos arquivos policiais, desistamos: se as coisas chegaram a esse ponto, a causa tá perdida. Assim, tá tudo dominado. É tudo deles, do crime, nada nosso. O que as informações da Polícia, segundo as quais dentre 18 pessoas precisavam ser assassinadas numa operação porque seus respectivos altos graus de periculosidade assim o exigiam, apenas duas, paradoxalmente, “tinham passagem” – e por questões não hediondas, afinal palavras como homicídio, latrocínio, sequestro, etc, não estão na ficha de ambos – dizem é que não há saída. Se o contingente de criminosos identificados como tais, sejam presos, foragidos ou nunca capturados, já é numericamente assustador, o que imaginar e esperar quando a Polícia, numa só incursão, mata 12 e baleia 6 que nem mesmo ela sabia antes tratarem-se de criminosos?

É isso que está dito nas informações oficiais do próprio estado: em cada bairro pobre, em cada campinho aqui e acolá podem estar reunidos agora dúzias de bandidos sobre cuja identidade e periculosidade nem a polícia tem conhecimento. É isso o que o texto policial sobre a operação da Rondesp no Cabula informa à sociedade.

Sendo assim, ou a cidade está infestada de criminosos sem ficha, dispostos a tudo, e a polícia só sabe disso no instante em que é obrigada a matá-los, ou há algo de muito paradoxal nessa equação em que entre 18 bandidos fortemente armados e poucos saídos da segunda década de vida 16 eram tão espertos que se tornaram assaltantes de banco capacitados sem nunca antes terem passado por uma delegacia na ascensão da carreira.

*Malu Fontes é jornalista e professora de jornalismo da Facom-Ufba