Do lado mais surreal dos pensamentos, Salvador revela uma arte desconcertante, sem a mínima consciência do valor de seu traçado, ou da própria vida mesmo. Esquizofrênico, o personagem de Paulo Vilhena em “Império” cria, com as cores de sua aura, o que Arthur Bispo do Rosário (1909-1989) exprimia com os fios do uniforme que vestia no manicômio: um universo pincelado de paz, um mundo sem o tom cinzento e sem graça da vida normal. Na solitária onde o paciente 01662 da Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá (Zona Oeste do Rio), passou 12 dos seus 50 anos internado, criando mais de 800 obras, o ator deixa escapar lágrimas que externam sua busca por tentar entender o que nem sempre as mentes sãs podem explicar.

— Passa uma tristeza… Você pensa que não é justo, cara! A gente sente compaixão mesmo. E de repente vê que o cara se tornou um grande artista, reconhecido — destaca o ator, de 35 anos: — Olha para o mundo que a gente vive! Os caras arrancando a cabeça do outro em rede mundial. Quem é o louco? O cara que está fazendo arte ou o psicopata maluco que está matando porque é de outra religião?

Sem nunca ter entrado em contato com os frequentadores da Colônia, apesar de ter gravado no local cerca de dez vezes, Paulo é logo capturado pelos artistas, ali tratados apenas com boas doses de cores. Maravilhado com tanta criatividade, o ator ri acanhado quando Patrícia Ruth, de 60 anos — mais da metade deles vividos no local — o chama num canto. Animadinha, ela quer se despedir de maneira especial do ator. Mas é o encontro com o jovem Gabriel José Teixeira Rolim, de 15 anos, autista, que desenha o quadro mais animado do dia. Espontaneamente, o jovem inicia uma dança ao lado do ator, que corre para se juntar aos demais na aula de percussão.

— Fui criado com uma pessoa com síndrome de Down, irmão de um amigo. De uma certa maneira, já tinha uma relação e costume de lidar com isso. Não me choca, mas fico com essa ideia de tentar entender de onde pode surgir tudo. É gratificante poder estar aqui. Não digo, óbvio, que é legal ver. Porque, se pudesse, não deixava existir (esses problemas). Mas acredito em coisas além do físico, da alma, do espírito. Viver isso me humaniza muito mais, me deixa mais próximo de coisas essenciais, de lidar com o ser humano profundamente. Essa experiência está me dando a oportunidade de aprofundar os meus valores, minha humanidade.

Sensibilizado com a atuação de Vilhena e fascinado por artes plásticas, Aguinaldo Silva acrescentou a sua aquarela de referências toques de outros artistas com problemas psíquicos, mas frisa: a obra de seu Salvador — cujo nome não foi inspirado no espanhol surrealista Dalí — é ímpar.

— O Bispo do Rosário foi apenas uma referência, mas preferi fazer a “obra” de Domingos Salvador menos surreal, mais elaborada. O Bispo, na minha opinião, apenas “se expressava”. Salvador, como Van Gogh (que também era esquizofrênico), e guardadas as devidas proporções, é um artista nato.

Com a fala mansa e muita paciência ao passar mais de três horas no local, admirando a exposição permanente do Bispo, Paulo frisa que não faz terapia. Encontra nos amigos mais próximos e nas ondas do mar conforto e consolo para enfrentar os problemas que o afligem. Usa os próprios trabalhos para lidar com as loucuras da vida e não deixar com que a ficção se (con) funda com o real.

— Tive uma escola muito boa com “A teia”, nesse quesito de entrar e sair da ficção rapidamente por conta da Nathalia (Costa, de 5 anos, cuja personagem era testemunha das vilanias do Baroni de Vilhena na série global, exibida no início de 2014). Precisava cuidar dela em cena, e como o Baroni tinha uma intensidade e crueldade, ficamos muito parceiros. Combinava que era brincadeira e transformava aquilo numa coisa lúdica. Então dizia para ela: “Nat, agora a gente vai trabalhar, você vai ser uma pessoa, eu outra, mas depois a gente volta a ser a gente” . E na hora do corte, eu já pegava ela para brincar. Isso me ajudou a não ficar com esse peso para mim.

Amigo de longa data, Rogério Gomes, o Papinha, que dirigiu Vilhena na série e assina também a direção de “Império”, se mostra cada vez mais empolgado com as transformações do ator:

— Sempre é gratificante ver o crescimento e amadurecimento de um ator que leva a sério a profissão. Isso é resultado de muito trabalho, estudo e dedicação ao ofício, e é a isso que credito o crescimento do Paulo.

Mas essa serenidade foi adquirida com muito tempo mesmo. Em outras situações, Vilhena chegou a sair de casa para o clima não ficar pesado.

— Vou muito fundo no estudo, na dedicação. Antes de namorar a Thaila (Ayala, atriz), quando estava com a Roberta (Alonso, empresária), havia momentos em que, no meio da noite, acordava tendo reações do que tinha feito no dia, como espasmos, falas, violência… Não com ela, mas de bater no travesseiro, amassar. Eram coisas que estava praticando, uma reação do inconsciente. Ela acordava assustadíssima. Fui para um hotel durante um tempo e não incomodava ninguém — revela o ator, que vai além: — Tinha uma coisa sexual também, como jogador de futebol, que na concentração não pode ter relação. Eu me sentia quase sem libido. Canalizava muito para a cena, ou ensaios.

Mas após tantos percalços provocados pelo tempo — e por ele mesmo — Vilhena admite que a vida precisa de um tempero de loucura. Dadas as suas proporções.

— Não é sair fazendo besteira, mas sim transgredir a si mesmo. Na minha casa sou superorganizado, tudo direitinho. Mas tem dia que toco o foda-se e vou transgredir, senão vira toque, algo obsessivo — verbaliza: — Quando passa a afetar o outro aí acho que não vale, a não ser que esteja combinado. “Vamos fundo? Então beleza”.

Casado com o trabalho

Separado de Thaila desde o fim de 2013, Vilhena entrou no time dos que se amam. Sem assumir compromisso desde então, admite não estar à procura de uma parceira para grandes aventuras.

— Estou muito focado no trabalho e na saúde. Claro que desejo, tesão, vontade de estar com uma pessoa, vai existir sempre. Graças a Deus! Tomara que seja assim até os cem anos. Mas essa coisa da busca por uma pessoa não é o que está acontecendo comigo agora — diz o ator, que anda se reavaliando melhor: — Acabou pelos motivos que acabaram, mas você tem também que se olhar um pouco, se reencontrar. Uma relação acaba te distanciando de você, do outro, e você perde uma porrada de coisa da tua essência. É muito bom se reaproximar disso. Estou muito feliz.

Devorando um sanduíche com açaí e marcando com o personal “um treino para mais tarde”, Vilhena diz estar recebendo os poucos fios brancos em meio aos que lhe restam com muito orgulho, e que anda “amarradão” com a proximidade dos 40.

— Estou feliz com quem estou me tornando. E vai ser isso diariamente, até o fim da vida. É muito legal poder falar dessas experiências que estão fazendo de mim um cara melhor. Eu me cuido hoje melhor que aos 25. Eu me preocupo, claro, mas de forma sadia. Não vou entrar numa paranoia. Envelhecer é foda, mas a gente está longe pra cacete!

A exposição permanente das obras de Arthur Bispo do Rosário pode ser visitada de segunda a sexta, das 10h às 17h. Aos sábados, somente com agendamento prévio. *Extra Globo