A iniciativa do Grupo Editorial da Assembleia Legislativa da Bahia de reeditar o livro A Devoção do Senhor J. Do Bom-Fim e Sua História, cuja primeira e única edição era de 1923, é um presente considerável para a história de Salvador. Sua importância está, sobretudo, na raridade das informações coletadas pelo autor, o médico e catedrático José Eduardo Freire de Carvalho Filho, tesoureiro da Irmandade do Senhor do Bonfim por quase 50 anos, a partir de 1884.O livro será lançado no dia 7 de julho, às 9 horas, no Centro Comunitário do Bonfim.

A família de Freire de Carvalho sempre integrou a Devoção do Senhor do Bonfim. Quando resolveu escrever o livro, o autor sabia da importância do trabalho. Achava que havia o risco do passado "cair no esquecimento" ou de ser "imerso na ignorância algo na história de tão salutar tradição".

Santo lenho

Talvez o episódio mais incrível seja a da doação à igreja de uma Relíquia Sagrada, "preciosíssima", pelo prelado Manoel Joaquim da Silveira. Ele, por sua vez, a recebeu do papa Pio IX.

Segundo a tradição medieval de valorização dessas "relíquias", o papa garantiu que o presente dado ao padre Silveira era um pedaço da cruz onde Jesus foi crucificado.

O "santo lenho" estava acomodado num rico relicário de ouro cravejado de esmeraldas e suspenso num correntão de ouro.

O presente foi entregue com grande festa à devoção, no dia 27 de dezembro de 1867. Ocorre que, como escreveu o autor, "mão sacrílega" surrupiou o objeto, "certamente não pelo Santo Lenho, mas pelo ouro e pedras preciosas do relicário".

O mais surreal, que revela o caráter sincrético do culto a Senhor do Bonfim, está na estratégia usada por alguns membros da irmandade para tentar recuperar a preciosidade.

Ao invés de buscar ajuda da polícia, apelaram "para o espiritismo, então muito em moda (na época do roubo), confiantes que os espíritos tudo descobririam".

Ou seja, entre os católicos integrantes da mesa-diretora da irmandade existiam alguns espíritas. Mas o artifício de usar forças do além não deu certo.

O templo, no entanto, não ficou sem relíquias santas. No dia da sagração da Igreja, 24 de junho de 1923, pelo arcebispo de Olinda Dom Miguel Varverde, foram acomodadas num sepulcro do altar de pedra do templo as relíquias de São Natal, São Querino e Santo Honorato.

Indulgências

Outra curiosidade, que remete à Igreja da Idade Média, está relacionada ao famoso Hino ao Senhor do Bonfim. Encomendado para comemorar o centenário do Dois de Julho, em 1923 – festa que culminou com uma das raras saídas da imagem do santo em procissão da Igreja do Bonfim à Igreja da Vitória -, a música agradou tanto que o arcebispo-primaz, dom Jeronymo Thome da Silva, concedeu cem dias de indulgência a quem o cantasse.

Carvalho Filho trata também da Lavagem do Bonfim, considerada pelos integrantes passados da Irmandade e da própria Igreja da Bahia como uma manifestação nociva à devoção litúrgica do santo.

Relata que, devido às "cenas desonestas" que ocorriam na lavagem, com muita bebedeira, licenciosidade e escândalos, diversos prelados trabalharam para acabar com ela. "Só em 1890 isso se obteve, porque a polícia se dispôs a auxiliar o Diocesano nesse desiderato", escreveu.

A partir desse ano, a lavagem do templo, de onde surgiu a festa profana que ocorria na quinta-feira anterior ao dia da Festa do Bonfim, no domingo, "passou a ser feita na sexta-feira, a portas fechadas, pelos empregados da Capela e alguns devotos sob a presidência do Tesoureiro e do Capelão tudo com o maior respeito e devoção".

Volta ao passado

Uma das "descobertas" fascinantes do livro aparece nos dias de hoje. E, curiosamente, é graças a uma das omissões que a obra apresenta, pelo fato de, durante a pesquisa, Carvalho Filho não ter conseguido descobrir entre os alfarrábios do Bonfim o "Termo de Compromisso" da Irmandade, que foi enviado em 1793 para aprovação do Rei de Portugal D. João VI, que nunca deu retorno. Um estatuto só foi aprovado em 1918, pelo arcebispo dom Jeronymo Thome da Silva.

Quis o destino que um membro da família Freire Carvalho, o ex-tesoureiro da irmandade do Bonfim, Luiz Geraldo Urpia Freire de Carvalho (sobrinho-neto do doutor José Eduardo Freire de Carvalho), achasse em 2008, a cópia do "Termo de Compromisso" perdido há 215 anos.

Modesto, Geraldo Urpia diz não ter certeza de que se trata do mesmo documento. No entanto, as evidências são muito grandes. O "Termo de Compromisso" é datado de 1792, um ano antes, portanto, que foi enviado para Portugal.

Outro dado relevante é que, graças a esse documento raríssimo, Geraldo Urpia mudou a história sobre a origem das "fitinhas do bonfim".

Vem do livro de José Eduardo Freire a versão de que o fundador do primeiro jornal da Bahia (Idade do Ouro do Brazil) Manoel Antonio da Silva Serva teria, como tesoureiro da irmandade, sido o inventor das ancestrais das fitas, as "medidas do bonfim", em 1809.

Ocorre que, no "Termo de Compromisso" achado por Geraldo Urpia, há uma citação sobre as "medidas". Isso significa que elas já existiam em 1792, ano em que Silva Serva ainda morava em Portugal. *A Tarde