Aos 14 anos, Jeane Louise descobriu que não era gay como sempre imaginou desde os 9 anos, quando preferia brincar com as meninas e nutria um sentimento secreto por um colega de escola. Depois de muita terapia, conversas e sofrimentos, ela – hoje aos 20 anos – decidiu realizar a cirurgia para mudança de sexo, autorizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), desde 2008.
Ela e o cirurgião e urologista Roberto Rossi Neto, da Universidade Federal da Bahia, estão lutando para que o procedimento seja feito na Bahia, sem a necessidade de viajar para outro estado ou até mesmo outro país. Assim que eles conseguirem vencer as questões burocráticas do trâmite exigido pelo Ministério da Saúde, Jeane será a primeira transexual feminina a fazer a cirurgia de transgenitalização dentro do estado.
Como qualquer pessoa que se candidate ao procedimento, Jeane tem que esperar completar dois anos de terapia voltada para o chamado transtorno de identidade de gênero, além de contar com o trabalho de uma equipe capacitada e credenciada a um hospital universitário ou credenciado ao SUS para realizar o procedimento, que é muito específico e delicado. Só para se ter uma ideia da complexidade do procedimento, além de Roberto Rossi, apenas seis profissionais realizam o procedimento no país.
Com o retorno do médico à Bahia, após uma temporada de 13 anos atuando na Universidade de Essen, Alemanha, as esperanças de Jeane reascenderam. Enquanto luta para deixar o corpo físico similar a sua essência, ela luta na Justiça para conseguir mudar o prenome e o sexo nos documentos pessoais.
“Meu processo foi indeferido inicialmente, com base em outros casos de transexuais que conseguiram fazer a adequação, espero conseguir alterar minha documentação”, diz. Ainda esse semestre, Jeane se submeterá a uma cirurgia mais simples para a colocação de uma prótese de silicone. “Espero que esse seja o primeiro passo para superar as muitas limitações que a condição de ser inadequada ao corpo traz”, completa.
Menina ou menino? Jeane é filha de pais separados e tem outros três irmãos: duas mulheres e um rapaz. Quando criança, morava com o pai e estudava em colégio de padres. O padrão de educação masculino, no entanto, não se encaixava no perfil quase delicado do menino que se comportava como menina.
Nessa época, um amigo de sala, com quem disputava as melhores notas, começou a lhe despertar sentimentos especiais que, naquela época, só causavam confusão. “Eu não contava nada a ninguém, mas não entendia por que eu gostava tanto dele”, relembra.
No entanto, nas brincadeiras do intervalo, as meninas eram suas companhias prediletas. O comportamento não passou desapercebido e a professora da época classificou como inaceitável. “Morria de medo que meu pai fosse chamado na escola por isso, cheguei a implorar que ela nunca contasse a ele”, lembra. O segredo foi revelado dois anos depois, logo após uma peça teatral encenada na escola, quando Jeane interpretou uma menina que ficava menstruada.
“Convidaram meu pai sem que eu soubesse. Durante a conversa, fui tomada por pânico e muita vergonha”, conta. Como castigo, Jeane foi proibida de ficar na companhia de garotas e foi levada a um psicólogo para tratar o que chamavam de vergonha.
“Foi nessa época que comecei a achar que eu só podia ser gay porque gostava de meninos, nunca havia passado por minha cabeça que eu fosse transexual”, relata, recordando que a condição não foi assumida diante da família, apenas para poucas amigas. Aos 14 anos, a jovem conheceu o trabalho realizado pelo Grupo Gay da Bahia e por Milena Passos, presidente da Associação de Travestis e Transexuais de Salvador(Atras).
“Nessa mesma época, conheci uma transexual chamada Fernanda e, de imediato, me identifiquei com ela, então soube qual era o meu lugar e o meu papel. Hoje, sou uma transexual cuja orientação sexual é ser hetero. Sou uma mulher que gosta de homem”, ressalta a jovem.
Consciente da sua identidade, Jeane começou a fazer as mudanças físicas que desejava. “A coragem de assumir vem com o tempo. Fiz as mudanças de forma paulatina para respeitar minha família, até mesmo o nome só feminilizei, mas mantive a escolha dos meus pais”,completa.
Hoje, Jeane mora com a mãe, tem um namorado que mora distante e construiu uma relação de respeito com o pai. “Eles não aceitam, mas respeitam a situação”. Em breve, Jeane também comemorará a formação universitária. “Ser transexual não significa se prostituir ou vulgarizar. Me espelho nos exemplos positivos, como Lea T, e vou construindo minha vida”, diz.
Transgenitalização começa nos postos de saúde
O transexualismo é a condição do indivíduo que possui uma identidade de gênero diferente da designada ao nascimento, tendo o desejo de viver e ser aceito como sendo do sexo oposto. No Brasil, as pessoas interessadas em realizar a transgenitalização pelo SUS devem, inicialmente, procurar os postos de saúde, que deverão dar início ao processo.
O serviço de atenção básica orientará para o encaminhamento ao serviço especializado, que fará as etapas preparatórias.Entre o pedido até a cirurgia deverão se passar, obrigatoriamente, dois anos, período no qual o paciente vai se submeter a um acompanhamento psicológico, pois uma vez que a cirurgia é realizada, o procedimento é irreversível.
Hospital não concluiu o processo para procedimento cirúrgico
Na Bahia, o Hospital das Clínicas (Hupes/Ufba) seria o centro universitário que realizaria os procedimentos. No entanto, a falta de formação de equipes capacitadas impossibilitou, até agora, a transgenitalização no estado. Até então, as pessoas interessadas em realizar o procedimento precisavam viajar para outros estados, para o chamado tratamento fora do domicílio. Pela alta complexidade e novidade, a cirurgia não é feita na rede particular e o custo estimado para realizar a mudança de sexo é de R$ 20 mil.
O acompanhamento depois da cirurgia é fundamental para o sucesso e deve durar, pelo menos, dois anos, quando o paciente – que precisa ter 21 anos – usa o stent vaginal para impedir que o corpo feche o novo espaço, a neovagina. Fone Correio