Embora não se saiba ao certo de onde os ciganos vieram, é fato que muitos escolheram a Bahia como morada. Este é o segundo estado do país com maior concentração de integrantes do grupo, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Seus costumes milenares, música e trajes típicos são inconfundíveis. Motivos de orgulho para a raça, mas de intolerância para muitos dos chamados “gadjes”, os não ciganos.

O comerciante Sandro Barreto já tinha conhecimento disso, porém nunca pensou que viveria um episódio como o daquela noite de quinta-feira. Morador de Alagoinhas há 35 anos, ele decidiu ir com a família a um restaurante da cidade. Sandro conta que, tão logo chegou ao estabelecimento, foi abordado pelo gerente. 

“Pensei que ele ia nos acomodar em uma mesa. Queríamos jantar e pagar tudo que consumíssemos, mas o funcionário disse que não aceitava gente da minha raça lá”, relembra. Com Sandro havia um grupo de dez pessoas, incluindo seu filho e sobrinhos. Crianças que não entenderam porque seu povo não era bem vindo no local.

Muitos outros membros da família já sofreram com episódios de preconceito, evitando reagir, já que os olhares tortos são comuns, mas este fato ocorrido no mês de julho o fez registrar um boletim de ocorrência. “Dessa vez precisamos, porque fomos muito humilhados em praça pública. Aquilo ali que eu passei, não desejo a ninguém”, afirma.

Um vídeo foi registrado na ocasião e acabou viralizando nas redes sociais. Ao invés de acolhimento, o grupo de ciganos sofreu novos ataques. Diversas pessoas se manifestaram concordando com o posicionamento do gerente do restaurante. “Cigano é problema”, escreveram.

Comentários feitos no vídeo compartilhado pelo Bahia No Ar

Esses comentários chegaram até Gilson da Cruz, residente de Camaçari, tida como a cidade com maior número de ciganos na Bahia. Ex-presidente do Grupo Cigano do estado, ele já lidou com diversas situações de preconceito, mas diz que é impossível não se afetar a cada novo caso.

“Eu já fui ao Ministério Público, à delegacia, e sempre que tiver alguém pregando a discriminação perante a mim ou alguém da minha família eu vou sempre procurar a lei, porque ela existe pra todos”, destaca. Embora diga que a sua cidade é a que melhor recebe os ciganos, muitos foram os casos desagradáveis que lá viveu.

“Recentemente, usaram palavras de baixo calão comigo, dizendo que cigano é ladrão… Eu só respondi a ele uma coisa: ‘Cigano é ser humano e exige que seja tratado como qualquer outro, portanto, eu vou procurar os meus direitos’, e fui”, relata. Essa ciganofobia pode parecer inofensiva, apenas uma opinião pessoal, mas há a possibilidade de que leve a situações extremas. Em entrevista ao Bahia No Ar, Gilson afirmou que seu povo está sendo dizimado em locais como Vitória da Conquista.

Após os assassinatos dos policiais militares Luciano Libarino Neves e Robson Brito de Matos, ao menos oito ciganos foram mortos em confrontos com as autoridades.

“Não compactuo com o que aconteceu com os policiais, mas também não acho que os policiais têm direito de sair matando os ciganos desse jeito. Pra fazer justiça existe a lei”, Gilson da Cruz opina. A seu ver, sua comunidade é constantemente generalizada e falta um olhar atencioso por parte do poder público, no desenvolvimento de políticas de inclusão e proteção dos direitos dos ciganos.

É o que pensam também os membros do Instituto Cigano do Brasil, que divulgaram nota pública sobre o assunto no último dia 16, denunciando violência na abordagem policial, terrorismo por meio de mensagens de WhatsApp e cerca de 15 pessoas baleadas durante a busca pelos supostos assassinos dos agentes da PM. Há relatos inclusive acerca de áudios atribuídos a policiais, nos quais estes prometem que vão “pegar todos os ciganos”.

Em seus posicionamentos, a organização pontuou que uma comunidade inteira não pode ser criminalizada por atos isolados. Pediram ainda uma intervenção urgente por parte do governo, a fim de garantir o direito à vida aos ciganos.

“Faraós, imperadores, reis, presidentes, governadores, prefeitos, vereadores sempre decretaram nossa retirada, debandada. Hoje não é diferente… A única força que recebemos dos poderes públicos sempre foi a força policial”, dizem, relembrando a perseguição histórica sofrida por seu povo.

Perseguição que dura até pós-morte. Vídeos e fotos de corpos de ciganos mortos em ações relacionadas ao caso foram divulgados nas redes sociais. A polícia abriu um inquérito, a fim de averiguar a situação. Membros da comunidade, no entanto, desacreditam que as autoridades se solidarizem com sua causa.

Em notas divulgadas pela Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), por exemplo, é comum que o fato de o suspeito ser cigano esteja destacado logo no título. Reforçando mais uma vez o estereótipo de ligação do grupo à criminalidade.

O governo estadual garante que atua dentro da legalidade no caso dos policiais mortos em Vitória da Conquista, adotando medidas para elucidar o crime. À reportagem, a SSP-BA disse ainda que não coaduna com excessos e que está à disposição para recepcionar qualquer tipo de  denúncia sobre má conduta policial por meio das Corregedorias, Ouvidorias e também do Disque Denúncia da SSP, através do 181.

Resistência

Como criar seus filhos em um cenário tão desanimador? É o que Adriana Marques se pega pensando às vezes. Mãe de uma menina de 10 anos de idade e de um menino de 14, a cigana faz questão de passar para eles toda a tradição e cultura que aprendeu com seus pais.

“É muito difícil como mãe saber que eles podem sofrer esse preconceito também. Eu procuro sempre orientá-los, fazer com que se orgulhem da raça. Busco dar um bom estudo para que, no futuro, possam se ajudar e se defender. Porque a única coisa que vai defendê-los um pouco desse povo cruel vai ser o estudo”, diz.

Como mulher, Adriana é mais facilmente reconhecida enquanto cigana, devido aos vestidos longos e coloridos que ela adora usar. Quando entra em uma loja, logo sente que está sendo seguida por funcionários. Pensam que a cigana pretende dar algum tipo de golpe.

Ela revela que a discriminação vem principalmente dos mais instruídos, os que detêm o poder, e é por isso que o preconceito se perpetua. “Essa gente precisa entender que o povo cigano é lindo e somos normais como todo mundo, só que de uma cultura diferente”, reflete. Adriana Marques espera que a pressão social não faça as particularidades do povo serem extintas.

Caso de Justiça

As pessoas são diversas, mesmo que tenham origens parecidas. Dentro de todo grupo existem indivíduos com características boas e ruins. É preciso julgá-los para além de sua raça, credo ou costumes. Quando este discurso não funciona e violações de direitos fundamentais ocorrem, é necessário procurar a Justiça, como orienta a advogada Gleide Cardoso.

Ela avalia que o preconceito contra os ciganos configura Crime de Racismo, previsto na Lei nº 7.716/1989, por se tratar de conduta discriminatória dirigida a um determinado grupo ou coletividade, podendo render pena de um a três anos de reclusão. O crime pode ser denunciado em delegacias especializadas ou nas unidades policiais comuns.

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