Nos tempos difíceis que atravessamos, ter contato com histórias de amores reais é também renovar a fé no ser humano e nos laços que ele pode formar. Neste Dia dos Namorados, vamos lhe contar sobre Yuna e Theo, um casal de Salvador que superou preconceitos e padrões para construir um lar repleto de afeto.

A trajetória dos dois já começa marcada pela arte. Yuna Vitória, além de estudante de direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), é cantora e compositora. Recém-admitida na banda Transbatukada, a moça agora teria a chance de compartilhar seu talento com outras pessoas que passaram pela transição de gênero, assim como ela.

Ao chegar no primeiro ensaio do coletivo percussivo de ativismo trans, em 2017, uma Yuna ainda deslocada aguardou que alguém a orientasse. Foi o instrumentista veterano Theo Brandon quem lhe deu as boas vindas. Eles ainda não sabiam, mas viveriam juntos alguns dos momentos mais importantes de suas vidas.

“Desenvolvemos uma conversa bastante interessante e desde então, a cada novo ensaio, nos aproximávamos mais”, Yuna relembra. “Tudo ocorreu de maneira muito orgânica, desde as paqueras aos gostos, que sempre se encaixavam, e os planos para o futuro também”, Theo completa. Posteriormente, conversando sobre eventos e palestras das quais tinham participado, o casal descobriu que já dividiu os mesmos espaços por diversas vezes antes daquele primeiro ensaio.

A aproximação foi ainda maior quando Yuna Vitória precisou fazer um show na cidade de Juazeiro e o amado se dispôs a acompanhá-la como violonista. “Graças ao apoio dele, tanto moral quanto artístico, tocando instrumentos, refinando repertórios, criticando e criando comigo, é que até hoje não desisti da música”, ela conta, afirmando que, sem o companheiro, não teria trilhado a maioria dos caminhos que percorreu como Yuna.

O relacionamento começou oficialmente há três anos e, de lá pra cá, os dois têm aprendido sobre o quão melhores podem ser juntos. Em janeiro de 2018 eles passam a dividir a mesma casa e, no ano seguinte, sua maior aventura teve início.

A transparentalidade

Quando assumiram suas identidades trans, assim como tantas outras pessoas da comunidade, Theo e Yuna viram parentes se afastarem e então se tornou latente o desejo de aumentar a família. “Vi beleza na possibilidade de construir uma família e de construir outros valores para nós, outros caminhos e histórias. Possibilidades”, a moça diz.

Para Theo Brandon, que precisou vir de São Paulo até Salvador porque parte de sua família descobriu que ele era LGBT, a ideia de ter um filho e construir um lar onde reinasse o respeito mútuo também enchia os olhos. Se antes a possibilidade de ter filhos biológicos parecia distante, já que os dois mantinham relações heterossexuais com pessoas cisgêneras (não trans), agora havia se tornado real.

“Quando conversamos sobre isso percebemos que a limitação consanguínea nós não tínhamos, o que tornava os planos muito mais fáceis de serem executados. Precisaríamos lidar apenas com os desdobramentos de ter que antecipar os planos, já que não teríamos tempo para preparar uma estabilidade acadêmica e profissional”, ele, que é estudante de medicina da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), afirmou.

Nesta conversa, o casal constatou que o filho precisaria vir ao mundo o mais rápido possível, pois as chances diminuíam com o tempo, em virtude da infertilidade provocada pelos tratamentos hormonais. Theo Brandon conseguiu engravidar e o casal então precisou enfrentar alguns de seus maiores desafios durante a gestação dessa nova vida.

“O apoio de Yuna foi fundamental nesse período, ela foi quem esteve ao meu lado prestando todo suporte emocional quando os hormônios e as situações do momento insistiam em me desestabilizar”, ele conta. Segundo o estudante, a companheira foi sua maior fonte de afeto e também garantiu que ele tivesse o gênero respeitado na Declaração de Nascidos Vivos (DNV).

Foto: Redes Sociais

A cantora descreve que a gestação foi rodeada de obstáculos, por conta do preconceito da sociedade e de entraves burocráticos dos sistemas jurídicos e de saúde. Esses aborrecimentos e aflições inclusive levaram Yuna Vitória a desenvolver quadros de ansiedade e depressão, mas ela garante que o desgaste não os impediu de aproveitar as alegrias da transparentalidade. “Se tem algo que essa violência toda não pôde nos tirar é o sabor de vivenciar esse momento que, para nós, que o desejamos tanto, foi mágico, momento esse que se mostrava presente e pulsante toda noite quando nos recolhíamos em nosso quarto e curtíamos, nós três, o aroma e o sabor da vida”, destaca.

O tão esperado bebê Dionísio nasceu no dia 7 de setembro de 2019, fazendo a alegria do casal. No mesmo dia, pessoas trans iam às ruas de Salvador numa marcha por isonomia em direitos e garantias de vida. Talvez não por coincidência.

A história de Theo, Yuna e sua família nos lembra de que pessoas trans têm direito a relações saudáveis e afeto, embora a sociedade por diversas vezes tente convencê-los do contrário. Theo Brandon conta que chegou a acreditar nas falas transfóbicas que tanto ouviu ao longo da vida e, durante certo tempo, isso o impediu de conquistar seus objetivos.  

“Acho importante que as pessoas trans que ainda vivenciam crenças como essa, antes de tudo, identifiquem o ciclo que estão alimentando e que a família e o afeto também são possibilidades para nós. Liberdade é, inclusive, poder escolher a experiência que você quer para si”, aconselha.

Ainda hoje, muitos não os vêem como pais de seu bebê e nem mesmo como um casal. Yuna entende que isso dá porque o afeto romântico infelizmente é tido como algo distante para sua comunidade. “No senso comum, as pessoas trans existem para satisfazer os interesses sexuais das pessoas cis, quando na realidade estamos bem preocupadas (e ocupadas) com outras urgências. Sobreviver é uma delas. Amar a si é outra”, a jovem ressalta.

Após viverem lutas, erros e acertos, os dois reconhecem que seu relacionamento alcançou certa maturidade, possibilitando que estejam mais abertos a receber e dar afeto. “Fomos nos conhecendo e nos moldamos aos poucos um ao outro, ao ponto de eu poder dizer que amadurecemos muito, o suficiente para continuarmos nos entendendo, mesmo com as novas configurações que o presente e o futuro possam nos trazer”, Theo reflete.

 “A maturidade nos ensina a ver o belo por trás do caos, ou a buscá-lo. Chegamos até aqui graças a essa capacidade de ver as coisas como elas são e lutar para que se tornem cada vez melhores, mais doces, acolhedoras e libertadoras”, sua esposa conclui.

A pandemia da Covid-19 trouxe inúmeras dificuldades a todos, mas o confinamento ao menos permitiu a este casal que acompanhe ainda mais de perto o crescimento de seu filho, centímetro por centímetro, vivendo as emoções de ouvi-lo construir seu vocabulário a cada sílaba pronunciada.

Neste processo, Yuna Vitória e Theo Brandon também precisaram se reinventar como casal, reservando momentos do dia para assistir filmes, comer pizza, jogar e namorar. Os dois ainda participam de palestras e podem ser comumente vistos juntos em eventos online sobre vivências trans, nos quais levam um pouco de sua experiência marcada pelo ato de resistir e amar.

Foto: Redes sociais
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