Capa do livro escrito pelo padre Lauro Trevisan
(Foto: Divulgação/Editora da Mente)
A publicação de um livro sobre a tragédia na boate Kiss, em Santa Maria, causou revolta e indignação entre alguns familiares das 241 pessoas mortas no incêndio de 27 de janeiro. Trechos da obra foram considerados ofensivos e desrespeitosos pela associação que reúne parentes das vítimas. A entidade já protocolou em cartório um ofício extrajudicial pedindo a retirada de circulação da publicação.
“Kiss – Uma Porta para o Céu” foi escrito no início de março pelo padre Lauro Trevisan. Natural de Santa Maria, ele já publicou mais de 70 livros, com temas como o poder da mente e autoajuda, entre outros. Trevisan diz que teve três objetivos ao escrever a obra. “Primeiramente, queria levar conforto às famílias. Segundo, erguer o ânimo e a energia de Santa Maria. Por fim, oferecer uma lição à humanidade, para que se crie um mundo mais justo, mais solidário e com mais respeito à vida", afirma.
Vendido ao preço de R$ 20, o livro já teve sua primeira edição esgotada. Segundo o autor, uma nova edição, com dois mil exemplares e sem os trechos considerados incômodos pela Associação dos Familiares das Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) será lançado nesta quarta-feira (10).
Dois pontos do livro foram considerados os mais problemáticos e deram início à polêmica. O primeiro chegou a levantar suspeitas de que algumas vítimas do incêndio estavam ainda vivas enquanto eram dadas como mortas: “No auge da balada celestial, o Pai perguntou se alguém queria voltar. Dois ou três disseram que sim e foram encontrados vivos no caminhão frigorífico que transportava os corpos ao Ginásio de Esportes”. O segundo narra uma suposta cena de resgate e foi considerado ofensivo pelo uso do verbo “agonizar”: “Num imenso gesto heroico de solidariedade, a salvar os que agonizavam em meio à fumaça funérea”.
Lauro Trevisan (E) diz que pretende passar mensagem de conforto com a obra, mas presidente de associação de vítimas, Adherbal Ferreira, vê tentativa de aproveitamento (Fotos: Divulgação e Felipe Truda/G1)
Lauro Trevisan (E) diz que pretende passar mensagem de conforto com a obra, mas presidente de associação de vítimas, Adherbal Ferreira, vê tentativa de aproveitamento (Fotos: Divulgação e Felipe Truda/G1)
Sobre o primeiro trecho, Trevisan diz que trata-se apenas de uma imagem, “de uma parte da alegoria que escrevi no início do livro”. A respeito do segundo, ele diz que utilizou o significado da palavra expresso do dicionário, de que “agonizar” seria o mesmo que “estar prestes a morrer” e não necessariamente sofrendo antes da morte.
Segundo o presidente da AVTSM, Adherbal Alves Ferreira, a publicação causou uma comoção na cidade, deixando muitos pais indignados com a forma escrita e com as palavras utilizadas para falar sobre o assunto. “Primeiro ele disse que pessoas relataram a ele como verdadeiras (as informações sobre vítimas encontradas vivas no caminhão). Depois, afirmou que eram ‘alegorias’. O pessoal ficou muito chateado. Nós precisamos de ajuda psicológica, da parte humana, de um abraço, de um voluntariado. A pessoa não pode brincar com essas coisas”, desabafa.
Por não querer mais nenhuma polêmica acerca do assunto, o padre disse que optou por retirar os trechos na segunda edição do livro. Segundo Trevisan, essa nunca foi sua intenção ao escrever. “Foi a minha maneira de ajudar as pessoas, escrevendo uma mensagem que poderia ser lida por todos. Podemos até ficar discutindo, mas não é a intenção do livro”, defende-se.
Para Adherbal, a decisão de veicular uma nova versão antes de conversar com a Associação dos Familiares é outro ponto de desrespeito. “Ele não ligou para mim, não falou com ninguém. Queríamos que ele tivesse respeito com os pais, viesse conversar com a gente antes de relançar o livro e ele não teve essa sensibilidade. Isso me dá a sensação de que ele está se aproveitando do momento para ter alguma lucratividade”, afirma.
Entenda
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, região central do Rio Grande do Sul, na madrugada de domingo, dia 27 de janeiro, resultou em 241 mortes. O fogo teve início durante a apresentação da banda Gurizada Fandangueira, que fez uso de artefatos pirotécnicos no palco.
O inquérito policial indiciou 16 pessoas criminalmente e responsabilizou outras 12. Já o MP denunciou oito pessoas, sendo quatro por homicídio, duas por fraude processual e duas por falso testemunho. A Justiça aceitou a denúncia. Com isso, os envolvidos no caso viram réus e serão julgados
Veja as conclusões da investigação
– O vocalista segurou um artefato pirotécnico aceso no palco
– As faíscas atingiram a espuma do teto e deram início ao fogo
– O extintor de incêndio do lado do palco não funcionou
– A Kiss apresentava uma série das irregularidades quanto aos alvarás
– Havia superlotação no dia da tragédia, com no mínimo 864 pessoas
– A espuma utilizada para isolamento acústico era inadequada e irregular
– As grades de contenção (guarda-corpos) obstruíram a saída de vítimas
– A casa noturna tinha apenas uma porta de entrada e saída
– Não havia rotas adequadas e sinalizadas de saída em casos de emergência
– As portas tinham menos unidades de passagem do que o necessário
– Não havia exaustão de ar adequada, pois as janelas estavam obstruídas
Fonte: G1