Quando chega o início da tarde, é certo que jovens artistas de Simões Filho estarão na porta de Carla Vivian, na Quadra 8 do Cia 1. “Carla, vamo abrir o Relicário!”, eles dizem, e a musicista logo atende ao pedido. Como não atender? É neste espaço cultural que tantos artistas locais encontram refúgio e têm suas particularidades valorizadas.

O Relicário fica em frente à casa de Carla, sendo berço de bandas, poetas e artistas visuais. Ali também acontecem oficinas de pintura, aulas de instrumentos musicais a um valor social, rodas de conversa e doação de livros. Essa história de fomento à cultura na comunidade começa ainda em 2013, mas corre o risco de terminar abruptamente, devido à falta de recursos para a manutenção das atividades.

Mais que um espaço físico, o Relicário é a arte que transborda de Carla Vivian. A iniciativa começou como um ponto comercial, para vender produtos da roça e divulgar um modo de vida alternativo. Tecnóloga, Carla atuou na indústria durante muitos anos, mas deixou a área para construir momentos memoráveis ao lado do filho. “Naquela época, eu era tão pobre que só tinha dinheiro”, relembra.

Nasce uma alternativa

Questionando-se sobre qual mundo queria deixar para sua criança, ela se tornou estudante de sociologia e deu início a um despertar de consciência social através do projeto. Com equipamentos cedidos por amigos, os eventos do Relicário começaram, trazendo discussões sobre classe, gênero e raça.

Em 2019 acontece um marco na história do espaço cultural, o Sarau Poeme-se. Era pra ser algo pequeno, ali mesmo, na Rua Piauí, mas cerca de 500 pessoas compareceram, entre moradores locais, espectadores vindos de Salvador e Chapada Diamantina.

“Começaram a existir pessoas querendo pertencer a esse universo, porque não tinha um espaço pra essa galera se mostrar. Depois eu fui percebendo a importância daquilo, pois ainda não tinha a dimensão”, Carla conta, emocionada.

Outros eventos e oficinas ocorreram desde então, reunindo jovens da comunidade que antes tinham apenas as praças do Cia para tocarem seus instrumentos e recitarem seus versos. Então vem a pandemia da Covid-19 e impõe a interrupção das atividades. Membro do setor mais afetado neste período, Carla Vivian relata ter precisado contar com serviços de caridade para sobreviver. A necessidade artística, no entanto, não era suprida pelas cestas básicas que recebia pontualmente.

“Eu estava enlouquecendo de tanta arte pulsando em mim. Comecei a pintar a casa toda, fiz 17 macramês em uma noite só, pintei uns 30 quadros, colori os muros das entradas da rua…”, diz. Com o emocional extremamente abalado, ela perdeu 15 quilos durante o isolamento.

Foto: Divulgação

Em 2021 as medidas restritivas foram flexibilizadas e o Relicário voltou a funcionar. Entre livros e discos de vinil que ajudam a justificar o nome dado ao espaço, um número reduzido de pessoas se reúne para discutir questões da atualidade ou aprender um novo instrumento.

A falta de apoio ameaça a existência do espaço

Sem nenhum tipo de auxílio do governo, o lugar corre sério risco de fechar. A solução encontrada pela idealizadora do Relicário foi criar uma campanha de arrecadação na internet, pedindo doações de qualquer valor através do PIX  71991116359.

“A idéia de pedir um apoio às pessoas é justamente sobre a gente poder fazer projetos, oficinas e aulas artísticas para atingir as classes mais baixas, sem cobrar nada por isso. Quando era mais jovem, eu queria encontrar algo assim”, ressalta. Na opinião de Carla, muitas pessoas talentosas têm se perdido em um universo de prostituição, sintéticos e perversões, por não encontrarem o devido acolhimento.

Para ela, o descaso da sociedade com esses indivíduos ocorre devido à intolerância em relação ao que é diferente. A proposta alternativa do Relicário também gera esse preconceito em muitos. “Por que acontece isso? Porque o Relicário é um lugar que abraça os trans, lésbicas, pretos, o pessoal que trabalha aqui catando latinhas…Pessoas que não foram abraçadas por ninguém. Essa é a oportunidade de mostrar que eles são mais que os rótulos que impuseram”, afirma.

Engajada, a musicista se tornou membro do Conselho Municipal de Cultura em 2020, mas ainda assim não conseguiu obter recursos para o Relicário. Ela cobra da prefeitura o auxílio emergencial da Lei Aldir Blanc, direito conquistado pelo setor cultural em junho de 2020, mas que nunca chegou às mãos de Carla Vivian ou dos artistas que dão vida ao seu espaço.

O Bahia No Ar entrou em contato com a Secretaria Municipal de Cultura e esta informou que os recursos da lei em questão não foram executados na cidade de Simões Filho em 2020 devido à falta de “tempo hábil” para sua correta aplicação. O auxílio da Lei Aldir Blanc está em conta específica, aguardando a regulamentação do governo federal para que a execução possa ocorrer através de novos editais.

Artistas resistem

A campanha para que o Relicário siga existindo movimenta as redes sociais e tem a participação de jovens como Kailane Oliveira, violinista da Banda Amarela, conjunto feminino que fez sua estreia no segundo Sarau Poeme-se e hoje contabiliza milhares de plays nas plataformas digitais.

“Se você é artista em Simões Filho e conhece o Relicário, você simplesmente sabe que existe um lugar pra você apresentar a sua arte, viver a arte, conversar sobre arte, aprender e muitas outras coisas. É realmente uma casa, um santuário da arte”, Kailane destaca. Também é o que pensa Amon Oliveira, baixista das bandas A Dama, Mandala Elementar e Ahuanda. Ele lembra que sua relação com o projeto foi de amor à primeira vista.

A seu ver, a maior função do Relicário é acolher os que o visitam e movimentar a cena artística na cidade. “Sem contar que é um espaço onde o alternativo se identifica e se sente livre, mas que também abraça sem preconceitos qualquer parâmetro que queria se encaixar no espaço”, reflete.

A poetisa Niambi Azinza ressalta o diálogo que o projeto mantém com a comunidade, trazendo alternativas e estratégias de arte-educação, algo que não tem sido muito valorizado na cidade, em sua opinião.

“Tenho visto desvalorização e despreparo com o público que se preocupa em movimentar culturalmente a cidade”, ela afirma. Os três representam tantos outros que se unem em uma só voz para pedir contribuições pelo Relicário, um movimento que coloriu a comunidade e hoje luta para não ser apagado.

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